Eduardo Ritter

Sofrimento e literatura andam de mãos dadas

Por Eduardo Ritter
​Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Não é sobre isso que vou falar hoje, mas estou escrevendo uma biografia. Trata-se de um projeto desafiador e prazeroso. Desafiador, porque é sempre instigante você tentar entender a vida de outra pessoa, especialmente quando ela tem uma trajetória de vida digna do melhor filme hollywoodiano. E prazeroso quando o biografado é uma pessoa espetacular que nunca para de te ensinar sobre a vida. Mas, como disse, não vou falar sobre esse novo projeto - afinal, é surpresa para daqui a alguns meses -, mas sim sobre uma das frases que o personagem principal do meu quarto livro repete diversas vezes: para conseguir chegar lá, foi preciso vomitar sangue. Eis uma frase que serve para a boa literatura.

Diria que a maioria dos meus livros preferidos foram escritos com os autores vomitando sangue. Pedro Juan Gutierrez, talvez literalmente, vomitou sangue na crise cubana dos anos 1990 para escrever os textos de Trilogia suja de Havana. Bukowski, bom, a vida de Bukowski, que baseia toda a sua narrativa, é uma mistura de sangue com sofrimento com ironia com bebida e sexo, com humor e muita filosofia de boteco. Hunter Thompson tentou rir durante uma vida inteira levada na marginalidade justamente por não se adaptar à sociedade americana dos anos 1960, 70, 80 e assim por diante. Enfim, um sujeito deslocado ou, como escreveu o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, um gauche na vida. Pois o escritor que escreveu algo que preste, de certa forma, foi isso: um gauche, um andarilho, um sofredor, um flâneur ou, como escreveu Jack Kerouac, um vagabundo iluminado, mas vivendo uma vida sem o status que a literatura e o cinema lhes deram depois que eles viveram em meio à pobreza e ao sofrimento. Erico Verissimo, Dostoiévski, García Marquez, Joan Didion, Chimamanda Adichie, Ralph Elison e muitos outros e outras escreveram obras primas em meio a lágrimas e muito aperto no peito. O curioso é que isso não quer dizer que as obras sejam deprimentes. Miguel de Cervantes, por exemplo, escreveu uma das peças mais cômicas e geniais da história da literatura humana direto da prisão: Dom Quixote. Provavelmente ele não escreveu esse livro em uma prisão com pássaros cantando, flores coloridas e pratos deliciosos com vinho ao seu dispor. Não, Dom Quixote, que te faz rir, foi escrito na labuta, no frio, no calor, na aflição e na amargura. Mas foi escrito com alma: eis o segredo da coisa. O sofrimento faz com que percamos a vergonha de desnudar a nossa alma na frente dos outros.

Esses dias postei numa rede social justamente isso: “o escritor que não tá f.... (errado?) dificilmente escreverá algo que preste. Por isso sigo escrevendo”. Mereceu 20 curtidas. Tu vês. É a prova de que sou um escritor fu... Porém, justamente por isso, é que escrevo com sangue nos olhos ou, como diria o meu biografado, vomitando sangue. Por um lado, pode também ser uma perspectiva de conforto. Quando as coisas não vão bem na sua vida, você acaba procurando instintivamente um lado positivo. Da minha parte, pode servir como um consolo: no money, no women but... maybe, good literature (sem dinheiro, sem mulheres, mas... talvez, boa literatura).

Enfim, enquanto sofremos, seguimos escrevendo.​

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